É preciso imaginar Sísifo feliz.

Na mitologia grega, os deuses condenaram Sísifo a empurrar uma pedra até o cume de um monte todos os dias. Ao chegar no topo da montanha, a pedra inexoravelmente cairia e ele teria de voltar à estaca zero e carregá-la até o cimo novamente. Para todo o sempre.

Milênios depois, o absurdista Albert Camus concluiu: “é preciso imaginar Sísifo feliz”.

Que sentido há em Sísifo continuar a carregar a pedra ao cume se jamais o alcançará? E ainda assim, ele o faz. O faz porque precisa; precisa porque os deuses o obrigam.

Camus passa, então, a correlacionar Sísifo com a humanidade. Somos poeira cósmica, uma centelha no meio de algo infinitamente maior. E passamos nossa existência realizando tarefas que não queremos e vivendo uma vida que parece ser fardo.

É preciso imaginar-se feliz. É preciso, mesmo no absurdo da vida, mesmo na ausência de sentido que é o existir, mesmo ante o fatalismo do fracasso inexorável, encontrar felicidade na lida diária.

“Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso ― o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito ― por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.”
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas.

Pois se Sísifo deixa de empurrar a pedra na montanha, ela cai e o esmaga. E, ao empurrar por vontade própria, não satisfaz a vontade dos deuses – que desejam vê-lo em sofrimento. 

“Ninguém tira a minha vida — Eu a dou por mim mesmo”
João, 10-18.

É ao aceitar a própria cruz e buscar viver de forma genuína, abraçando suas dores e fortalezas que encontramos nossa autenticidade e singularidade. Não é fácil, mas que fazer além disso?  

Este esforço diário para encontrar sentido não é outra coisa senão amor. Querer sentido no viver é uma causa perdida. Logo, buscar sentido na vida é amar uma causa perdida.

Por amor às causas perdidas.

Por mais bizarro que seja, para mim, Dom Quixote é o personagem ficcional que melhor representa o ânimo e o prazer em lutar arduamente pelo inalcançável. É quem melhor representa a alegria em carregar sua própria pedra, de lutar por valores que não existem e não existirão mais – se é que um dia existiram, de fato…

Se a Terra ou o Sol gira em torno do outro é uma questão de profunda indiferença. Para dizer a verdade, é uma questão fútil. Por outro lado, vejo muitas pessoas morrerem porque julgam que a vida não vale a pena ser vivida. Vejo outras, paradoxalmente, sendo mortas pelas ideias ou ilusões que lhes dão um motivo para viver (o que se chama de motivo para viver também é um excelente motivo para morrer). Concluo, portanto, que o sentido da vida é a questão mais urgente. Como respondê-la? Em todos os problemas essenciais (quero dizer aqueles que correm o risco de levar à morte ou aqueles que intensificam a paixão de viver) provavelmente existem apenas dois métodos de pensamento: o método de La Palisse e o método de Dom Quixote.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo.

Porque Alonso Quijano é o fidalgo que abandona sua confortável vida e se expõe às dificuldades das andanças e aos hematomas e fraturas sofridos em prol de seu ideal.

Porque ao se tornar Dom Quixote, Alonso Quijano se torna o herói absurdo: inventa sua própria razão de viver; alcança o lirismo de dar sentido ao que simplesmente não tem sentido.

Em uma época tão hedonista, em que a dopamina norteia as atitudes e o sentido da vida se resume a se regozijar com o unboxing de um celular novo ou com a quantidade de likes na foto do Instagram, amar a arte e ver nela uma razão para viver é lutar por uma causa perdida.

Como Quijano, estou farto de viver sem autenticidade. Como Camus, quero encontrar através do contato com a arte um sentido para o que não tem sentido e uma expansão de consciência que parece impossível no meio que nos rodeia.

Por isso me considero Quixotesco. Porque querer viver desta forma em um mundo cada vez mais materialista é utopia e ufanismo. Mas é o único sentido que vejo nessa luta pela sobrevivência.

A arte enquanto expansora de consciência.

Graças à internet, as paredes que nos separam nunca foram tão finas.

Estamos a poucos cliques de distância de uma obra de arte renascentista, do PDF com o livro de um escritor russo, do filme sueco fatalista.

E, a cada vez que criamos a coragem de colocar o ouvido nessas finas paredes e ouvir cautelosamente o que se sussurra do outro lado, nos deparamos com uma vida que não pensávamos que existisse.

É através da arte que sentimos aquilo que jamais sentiríamos. É através da arte que conseguimos entender um pouco da realidade vivida a cinco mil quilômetros de distância ou quinhentos anos atrás.

A arte expande nossa consciência. Nos faz abençoar a vida mesmo quando não vemos razões para abençoá-la; nos faz agradecer a visão, a audição, o tato, a fala e até mesmo o paladar quando simplesmente não existir seria bem melhor.

O prazer de ouvir uma música que nos causa arrepios, a emoção de assistir a um filme que toca o âmago de nossas emoções, a fixação em ler um livro cuja história parece te prender como se você fizesse parte daquele mundo, o choque ao ler um pensamento filosófico que parece abrir as cortinas do universo e te apresentar uma verdade antes oculta e inacessível, o deleite de ver uma obra de arte e encontrar em alguns traços feitos com pincel e tinta um sentido para viver.

É pela penumbra deste caminho — o da arte, que transborda minha miserável existência — que quero peregrinar.

Quero, de alguma forma, neste caminho interminável, partilhar com alguém – algum estranho, que sequer saiba quem sou e se de fato existo – os prazeres e delícias e as dores e horrores de existir. Tudo isso através da arte.

Quero compartilhar filmes, livros, músicas e ensaios que me toquem. E quero ser capaz de produzi-los também.

Me acompanha nessa jornada?

Quixotesco

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